domingo, 20 de abril de 2014

Natasha

Já te conheço a um certo tempo e talvez esse tempo não faça jus ao nível de conhecimento que temos um do outro. Sabes dos meus medos, sei também os seus. Vibro com suas vitórias e me chateio com os rateios que recebemos da vida uma hora ou outra e gosto de pensar que também age desta forma comigo também. Conheço você ao nível que possa dizer que se conhece bem uma pessoa, e ainda assim tenho a impressão de que não conheço 7% do que realmente és, ou do que deseja aparentar ser. O espelho reflete uma imagem conhecida, embora há tão pouco tempo descoberta, e então você clica. Registra para o futuro o troféu de um campeonato travado contra si mesma, e do qual saiu vitoriosa: eu venci! Registro de um sonho de uma menina que um dia quis ser bela, mas que não percebeu que a verdadeira beleza já estava dentro de si. A beleza estética pertence às obras de arte, à linha do traço do desenhista, que poderá modifica-la conforme o seu gosto ( e a sua borracha), a natureza divina e toda sua grandiosidade. A beleza palpável e real escapa na doçura da sua voz, puxada nos esses e erres de um não-sotaque, na inteligência humilde de analisar os fatos do cotidiano sem deixar-se afogar nas suas próprias qualidades. No carinho que dispensa aos amigos, fazendo os sentir especiais. As poses escondem uma garota que ainda quer brincar de (fazer-se de) boneca, e que ressente por ter desejado tanto as coisas conquistadas que agora não lhe servem: inteligência, independência financeira, perspicácia... Tudo isso não é demonstrados em suas poses e sua imagem de mulher independente e segura de si. Mas afinal, quem é tudo isso que trombeteia ser? Eu sei que você é muito especial e isso é apenas o que você permite que a gente deduza por todas essas poses.

"Poses" por Rufus Wainwright

"As paredes amarelas estão cheias de retratos
E tenho a minha encantadora nova jaqueta vermelha de couro
Todas essas poses, poses tão belas
Faz qualquer garoto querer colher rosas 

Nunca houve assunto tão sério
Quanto comparar nossas novas marcas de óculos escuros 
Todas essas poses, poses tão belas 
Faz qualquer garoto sentir-se tão belo quanto um príncipe 

Os parques verdejantes de outono conduzindo 
E as ruas da cidade num maravilho coro
Vendo todas essas poses, ah como você pode me culpar? 
A vida é um jogo e o amor verdadeiro é um troféu 
..."

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Playlist da Depressão


Durante as férias, remexendo alguns livros antigos acabei por encontrar o livro “A vida segundo Peanuts”, no qual Charlie Brown e seus amigos, nas famosas tirinhas de Charles Schultz, dão pequenos ensinamentos sobre a vida. Uma em especial me chamou atenção, esta que ilustra o post, que a vida tem momentos bons e ruins, picos e vales, dias e noites... É assim que as coisas são. E esta playlist é para os momentos de vale... As músicas mais tristes que eu conheço, e talvez algumas das mais bonitas. É possível ver o sentimento, a melancolia, a agonia e a desolação em cada uma delas, e enxegar a beleza nisto, afinal, elas também fazem parte da vida. Picos e vales...

Sufjan Stevens - Casimir Pulaski Day: A história de um amor interrompido por um câncer é um assunto altamente improvável para ser objeto de uma canção, mas Sufjan Stevens e seu banjo conseguem trazer beleza e leveza à desolação e a sensação de impotência que uma doença desta traz. Bela e contundente. 
“... All the glory that the Lord has made and the complications when I see His face in the morning in the window...”

Patrick Watson – The Great Escape: Quem nunca teve um dia ruim? Onde tudo que se quer é desaparecer, longe do barulhos, dos risos forçados, buscar o caminho de casa... Relaxar e esperar as coisas acalmarem são as palavras de ordem da canção e sua melodia realmente fazem isso com a gente.
“...Hey child, things are looking down, that's okay, you don't need to win anyways...”

Marissa Nadler – Under an Old Umbrella: Um encontro com um desconhecido de olhos turquesa debaixo de um guarda-chuva velho fazem uma moça de olhos de cor de amargura aquecer seu corpo frio. Sua voz etérea transmite uma tristeza antiga e profunda que falam mais alto que este encontro amoroso.
“Say hello to the sea or to the lonely water, say hello to the sea under the skies of azure...” 

Paul Tiernan – How to Say Goodbye: Fins de relacionamentos são tristes. E fim de relacionamentos em série? Uma pessoa que ama dizer adeus e sua incapacidade de ligar-se aos outros sintetizam nesta música simples a toda a melancolia de um relacionamento que não foi para frente.
“...Run away and try to forget just not to stay, to leave without saying why...”

The National – Sorrow: E se a tristeza te encontrasse quando você ainda era jovem? E se ela vencesse você? E se você morasse em uma cidade que a tristeza construiu? Essa música transmite muita coisa para mim, é uma das minhas preferidas do The National. E uma das mais bonitas.
“Sorrow found me when I was young, sorrow waited, sorrow won...”

Lana Del Rey – Yayo: Uma garota perdida em um trailer park disposta a sair daquele ambiente decadente e amargurado. Shows privados, casamentos furtivos em Nevada, vestidos de casamentos baratos fazem parte do cenário construído por Del Rey (e segundo algumas teorias, baseado em fatos reais de sua vida) e lindamente entoados nesta canção de ninar um pouco macabra.
“Hello Heaven, you are a tunnel lined with yellow lights on a dark night...”

Travis – Why Does It Always Rain On Me?: Essa música já foi um hino para mim, quando eu costumava achar que as coisas não davam certo somente para mim. A indignação e a impotência são belamente exprimidas por meio da poesia de Fran Healy sobre àqueles momentos onde todos estão bem, exceto você.
“I can’t sleep tonight, everybody's saying everything is alright, still I can't close my eyes... I’m seeing a tunnel at the end of all these lights...”

Essa playlist não tem por intenção promover ou endossar a tristeza, a melancolia ou a depressão (embora este possa ser um efeito colateral dela, rs), mas sim mostrar que estes momentos existem e podem ser superados. Fazem parte da vida. Picos e Vales. :)

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Literatura: As Virgens Suicidas


Aproveitando o tempo livre das férias eu peguei um dos meus livros favoritos para reler, “As Virgens Suicidas”, de Jeffrey Eugenides, publicado inicialmente em 1993, e recentemente relançado em uma nova tradução pela Companhia das Letras. E novamente fui arrebatado por uma explosão pungente de sentimentos e reflexões que somente uma obra de tamanho talento e importância é capaz de despertar. Relatando a tragédia que se abate sobre a família Lisbon e suas 5 filhas, em um subúrbio americano nos anos 70, Eugenides, em seu romance de estréia, tece um sensível panorama do crescimento e das dores da adolescência em uma primeira leitura. Mas como toda grande obra é rica de múltiplos significados e leituras, aprofunda-se sobre as relações superficiais do mundo atual, a aversão aos inadequados, os efeitos nocivos de uma educação repressiva e controladora e a melancolia sobre um tempo que não volta, borrado e modificado pela memória. É difícil não dar detalhes da estória, visto que até o título entrega o desfecho final do livro, mas o importante da prosa de Eugenides é como ele se aproveita de um relato quase confessional de um grupo de garotos, vizinhos das meninas Lisbon, para dar vazão à sentimentos como a paixão, o amor, a admiração, o temor e a confusão típicos da adolescência (e por que não da vida adulta?). O texto é fluído e apesar do tema difícil e pesado, usa de um lirismo quase fantasioso que empresta um ar de extraordinário e mágico aos acontecimentos ordinários do passado, artifício comum quando imaginamos (ou lembramos) de fatos ou pessoas que nos falam mais perto ao coração. E isso acontece também ao leitor de “As Virgens Suicidas”, é uma tarefa árdua não se emocionar ao ler suas páginas e desejar de alguma forma interferir naquela tragédia anunciada, mudar o destino cruel daquelas garotas como os protagonistas-invisíveis também desejaram. Traduzido em mais de 34 idiomas, “As Virgens Suicidas” tornou-se um clássico da literatura americana atual e foi levado às telas de cinema com o mesmo cuidado e delicadeza pelas mãos de Sofia Coppola, forma pela qual eu conheci o livro, e igualmente recomendado àqueles que se encantarão pelo livro. Descendente de gregos, Jeffrey Eugenides criou uma tragédia grega contemporânea, onde Destino, Morte e Paixão, determinam a vida dos mortais, como na Antiguidade, em uma história cheia de tristeza, suicídio e melancolia, mas ainda assim repleta de beleza. 

domingo, 15 de setembro de 2013

Janelle Monáe - The Electric Lady


É verdade que a história se repete em ciclos: alguma coisa é considerada de vanguarda, torna-se moda, a moda torna-se o padrão, o padrão torna-se obsoleto até que surja outra coisa considerada de vanguarda para dar continuidade ao ciclo. Muitas vezes o que é considerado de vanguarda na verdade já é algo conhecido, tornado obsoleto e esquecido que retorna com uma nova roupagem, uma nova cara. O mundo da música também funciona assim. Uma vez ou outra um artista novo rompe esse paradigma e acrescenta algo de realmente diferente, e consegue entrar para história. Aconteceu assim com Louis Armstrong, David Bowie, Tom Jobim, Michael Jackson, Madonna e a julgar pelo último lançamento de Janelle Monáe, The Electric Lady, é entre esse panteão que ela deseja figurar. 

“The Electric Lady” é a terceira e derradeira parte de um projeto ambicioso iniciado em 2007, quando foi lançado o seu primeiro EP “Metropolis: Suite I (The Chase)”. Através de sua música, Monáe desejava contar a história de Cindi Mayweather, uma androide de um futuro próximo que ao apaixonar-se por um humano, Anthony Greendown, e recusar-se a ser desmontada (destino dado aos androides transgressores) inicia uma revolução. No seu segundo álbum, “The ArchAndroid”, Cindi continua sua fuga e ganha ares de mártir e messias de uma nova ordem mundial. Na récem lançada “The Electric Lady”, Cindi Mayweather ganha consciência da sua força e do seu poder. Já não bastasse a singularidade da história que segundo a própria cantora pode ser transposta para a comunidade negra, ou a comunidade homossexual ou às mulheres, em suas respectivas lutas para a garantia de respeito e direitos civis e individuais, deve-se também levar em consideração a coragem de lançar álbuns conceituais em uma indústria cada vez mais sedenta por singles rentáveis. 

Janelle Monáe faz tudo isso produzindo música de excelente qualidade. Em seu último álbum, contando com a ajuda de grandes nomes da música atual (todos expoentes da black music, como Prince, Erykah Badu, Solange Knowles, Miguel e Esperanza Spalding), ela desfila com elegância todo o seu groove, flertando com o rock, o pop, o hip hop, o rap e até mesmo a ópera em seus overtures. É difícil decidir quais são faixas destacam-se mais devido à qualidade do álbum como um todo, mas são grandes candidatas à clássicos da black music contemporânea: a power-ballad “Primetime”, no qual divide os vocais com o astro do hip-hop Miguel, a uptempo “We Were Rock ‘n’ Roll”, a semi gospel “Victory”, o soul de “Dorothy Dandridge Eyes”, além dos singles já lançados “Q.U.E.E.N.” e “Dance Apocalyptic”.

Monáe encontrou em “The Electric Lady” a fórmula perfeita para equilibrar sua voz única e aveludada, com melodias cheias de swing e mensagem social. Sua sonoridade levemente retrô sessentista, ecoa o rhythm and blues, o soul e o funk dos discos da era de ouro da Motown, mas aponta mesmo é para o futuro da música contemporânea.

sábado, 24 de agosto de 2013

Growing Pains

Não é fácil abstrair, mas você já pensou que talvez você não seja a perfeição de pessoa que você imagina ser? Que talvez aquele seu colega de trabalho te ache um escroto por algo que você nem fez? Ou até fez, mas não percebeu? Que aquela vizinha que você não gosta, por razões desconhecidas até por você mesmo, tem o mesmo direito de não ir com a sua cara que você? Você não acha que falam de você com a mesma maledicência (mas não maldade) que você fala dos outros, ao telefone com amigos próximos? Você não acha mesmo que destruiu o coração (ou até mesmo a vida) daquela menina que você enganou? Talvez não tenha sido a sua intenção, mas aquele choro foi real... Você é, sim, capaz de machucar alguém. É difícil pensar dessa maneira porque estamos acostumados a pensar que estamos sempre certos e enxergamos o mundo pela nossa perspectiva e sob nossos valores. Mas a dura realidade é que como seres humanos somos imperfeitos, tendemos ao erro e escondemos nossos sentimentos. Somos, enfim, humanos. 
A raiz para esta distorção da realidade talvez esteja na infância, com pais eternamente satisfazendo as necessidades mais pueris das crianças, tornando-os adultos egoístas e mimados. Talvez. Talvez seja a adolescência e a necessidade da criação de uma imagem auto-afirmativa: uma proteção para os medos e as incertezas do crescimento – as coisas TÊM que ser da nossa maneira. Talvez não. Talvez seja intrínseco do ser humano fazer as coisas e levar a vida guiado pelo seu próprio umbigo. Não gostamos de receber ordens. Não gostamos de confrontos. Não gostamos, porque não é do meu jeito – e ponto! O problema é que ao atingir a vida adulta iremos confrontar e sermos confrontados com a perspectiva de mundo do outro – também auto-suficiente, auto-afirmativo e, invariavelmente, contra você... – nas relações interpessoais, nas relações de trabalho, nas relações corporativas, na mesa de bar. O inferno são os outros. É difícil reconhecer os nossos próprios erros e as nossas falhas, mas é fundamental, para o nosso crescimento e amadurecimento. O mundo não gira à nossa vontade. Nunca. Não existe um Big Brother pessoal acontecendo atrás do espelho do seu banheiro, onde a única pessoa que você não consegue mentir no mundo irá lhe encarar: você mesmo. 
O que você diria desse íntimo desconhecido? O que essas olheiras que estão se acumulando abaixo dos seus olhos têm para contar? E o que esses sinais e linhas de expressão dizem à você mesmo? Você quer apaga-los com cremes rejuvenescedores e Botox? E essa lágrima que cai agora será superada por algum riso do futuro? Ou até mesmo do passado? O que você pensaria de você visto de fora? Este é um bom exercício para se fazer de vez em quando e segue a mesma linha de pensamento quase bíblico que prega: “não faça com os outros o que você não gostaria que fizessem com você”. Pensar dessa maneira é como levar um soco no estômago ao ser questionado:

- Você passaria pelo seu próprio julgamento?

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

O Despertar

Ontem despertei de um sono profundo. Na verdade, eu nem estava dormindo, eram 19:36 e eu estava na rua, em pé, olhando o trânsito e a confusão da cidade, mas eu despertei. Sonhos intranquilos. Eu havia corrido, eu estava sempre correndo, e aquela infinitude de carros parados, uns atrás dos outros, enfileirados à espera de uma resolução para o engarrafamento (ou seriam dos seus problemas?), me fez pensar um pouco. E neste pensar, eu despertei. Caía uma garoa fina, que não ia durar muito, apenas o suficiente para atrapalhar os planos de quem queria chegar mais cedo em casa - a Natureza tem dessas coisas- e os pequenos pedaços de grama remanescentes entre o cimento, o calçamento e o asfaltos, soltavam o cheiro doce de terra quando é molhada, logo abafado pela fumaça dos carburadores de uma infinitude de carros enfileirados. Havia barulho: conversas alheias sobre amenidades, brigas de casais, buzinas e risadas e esperneios daqueles que esperavam dentro e fora dos automóveis pela resolução do tráfego, logo sendo silenciados pelas gotas de chuva que começavam à engrossar – a Natureza tem dessas coisas. Eu estava ali, em pé, alheio à tudo aquilo, sentindo a chuva e, estranhamente confortável naquela posição. Talvez tenha sido a luz vermelha, agora embaçada pela chuva, dos faróis traseiros dos carros constantemente com o pedal do freio pressionado, talvez tenha sido a música que ouvia no momento, a batida forte e eletrônica de Moon Theory, talvez tenha sido a sensação de frescor dos pingos da chuva, batendo no meu rosto, após uma corrida (ou talvez, uma vida toda corrida?), ou talvez tudo isso junto me fez despertar de um sono profundo. Senti como há muito não sentia que estar vivo é uma dádiva, percebi que todo sofrimento não dura e é, muitas vezes, sem razão, que, ainda que não desejemos, ainda vivemos em coletividade e ação do outro – ou a sua ação – ainda reflete na vida dos demais, e que quando a chuva cai, ela cai para todos. Pode parecer um imenso amontoado de lugar-comum, cliché, ideias vagas, mas foi a percepção disto que me fez despertar. Foi um adormecer anestesiado, um sub-limiar de percepção, daquele que não revigora e que a gente se questiona a todo momento se é real ou não. Sonhos intranquilos, é verdade.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

As Dores de Ser Bonzinho

Bonzinho é um cãozinho. Tem 5 anos, é um vira-lata bonitinho e sabe-se lá por quê seus donos quiseram lhe batizar desta maneira, mas por Bonzinho lhe chamaram, por insistência, Bonzinho atendia. Bonzinho foi o quinto de uma ninhada de sete, ele não conheceu muito dos seus irmãos, fora o Mais Velho e duas cadelinhas, no sentido ruim da palavra. O Mais Velho, seguido e admirado de perto por Bonzinho, é um vira-lata amarronzado, malandro, dono do próprio focinho, um cão das ruas. As duas cadelas não sabem fazer nada além de bocejarem com a barriga para o alto, pondo as patas para o ar, esperando um cafuné, são cadelas de madame, Bonzinho não tem muita afeição a elas. Bonzinho não se lembra da sua mãe, mas lembra-se do sentimento de ter sua cabeça lambida enquanto mamava, e como era quentinho, no meio dos seus irmãos, ficar naquela posição, protegido do mundo. Quando se lembra disto, Bonzinho fecha os olhos e acha que está contente. Bonzinho queria ser como seu irmão, sem amarras, sem coleiras, sem lei. Mas Bonzinho sempre foi bonzinho, até um pouco demais. Sempre fizeram acreditar que Bonzinho não era mais um vira-lata: “Bonzinho, seu focinho é o mais bonitinho de todos os outros cachorrinhos!”. “Bonzinho, como você é esperto!”. “Bonzinho, eu te amo!!!”. Bonzinho não entendia muito daquilo, sentia-se como qualquer outro cachorrinho e frente à tanto amor e carinho, somente rolava, de um lado para o outro, com a língua pra fora, gozando de toda aquela situação.


Bonzinho se fascinava era mesmo pelo cheiro vivo que vinha das calçadas, vivia pelas escapadas que dava sempre que alguém esquecia o portão da casa aberto ou quando chegava alguma visita. Ele não perdia uma oportunidade, sempre que podia, lá estava Bonzinho explodindo pela rua, em meio ao desconhecido, com todo aquele barulho e confusão que ele só vislumbrava pelos buracos do muro do quintal ou fantasiava com as histórias contadas pelo Mais Velho. As cadelas olhavam de lado, com desdém: “Ora, Bonzinho, você não foi feito para as ruas...”; “Deixa ele, vai acabar atropelado!”. Mas Bonzinho fingia não ouvir suas irmãs, caminhava com a cabeça baixa, ressabiado, em direção ao quintal, para logo, distrair-se perseguindo uma borboleta, a esmo. Como aquilo era bom! Aquilo já lhe satisfazia, o correr exasperado em direção aquele estranho ser voador e amarelo, ora aqui, ora ali, isso Bonzinho amava. Não iria se preocupar com o que falavam as cadelas se ele se divertia sozinho, perseguindo uma borboleta e como aquilo era bom. 

Quando chegava à noite, solto no quintal, Bonzinho fazia a festa, corria de um lado pra outro, olhava as estrelas e queria latir para elas, algumas vezes chegou a latir e aquilo era maravilhoso, melhor que perseguir borboletas, melhor que correr nas suas escapadas. O pessoal da casa estranhava: “O que será que deu em Bonzinho?!” Bonzinho continuava a correr de um lado para o outro, na esperança de alguém pular o muro e ele poder avançar, como assim lhe falaram para fazer um dia e ele, de alguma forma, sabia que era aquilo que devia ser feito. Ele não sabia como e nem o porquê, mas se alguém entrasse ele iria avançar. Não teria medo. De certo, não teria medo mesmo. E isso satisfazia Bonzinho, saber que não era apenas bonzinho, era corajoso. Corajoso e sabia latir pra lua e para as estrelas, pode um cachorro ser mais feliz que isso? Bonzinho se recusava a acreditar que existia felicidade maior que aquela. 


Isso foi até o dia que deixaram o portão aberto à noite, e como era natural à Bonzinho, ele explodiu portão à fora, chamado pelo cheiro das calçadas. E essa noite foi a mais feliz de sua vida. Bonzinho chafurdou o lixo, acabou comendo algumas coisas estragadas, e não importava, adorou a sensação. Bonzinho descobriu que a calçada da sua casa desembocava em outra calçada, e esta em uma outra, e esta outra em outra diferente, numa profusão sem número de calçadas que o deixou confuso. Confuso, mas feliz. Longe da sua casa, Bonzinho caminhou entre muitas pernas de pessoas que não eram as da sua casa, nem aquelas que vinham aos finais de semanas trazendo comidas em travessas. Bonzinho não tinha medo daquelas pernas. Latiu para dois outros cachorros, ambos menores, estava a fim de brigar, mas seus adversários estavam encoleirados. Pensou que talvez fosse melhor assim. E por toda a noite Bonzinho vagou... No caminho para casa, parou para olhar o céu e naquele dia ele estava ainda mais iluminado e brilhante. Bonzinho latiu para o alto como nunca tinha latido antes. Estava realizado. Voltou para o conforto do seu quintal e foi dormir após a maior escapada que tinha dado na sua vida de cão. Não era mais apenas o cãozinho Bonzinho. Era outra coisa. Dormiu esboçando um sorriso, com a língua pra fora, exausto. Jamais poderia supor que existia um pouco de lobo dentro de cada cão Bonzinho.